4.12.09

GOA e DAMÃO - Memória de afectos, cultura de memórias

Diz-se que a cultura é aquilo que resta depois de esquecermos tudo o que aprendemos.
Pois bem, no preciso momento em que faz quatro anos que andei por terras da Índia, o que ficou para além dos lugares-comuns dos roteiros turísticos? O que me marcou e  não esperava nem está escrito nos folhetos publicitários de viagens? O que me ficou na memória e no coração, que não conste de livros a que terei acesso se quiser algo recordar?
Primeiro, foi um estranho sentimento de conforto familiar quando cheguei ao aeroporto de Goa. Não me senti estrangeira.
Os sorrisos, o imenso colorido de flores e cores, os aromas e a língua portuguesa falada com fluência, a par do Inglês, Hindi e Conkani, confundiu-me agradavelmente. Mas, tudo bem. Até estava acompanhada pelo Padre António Colimão, nascido em Damão. Daí, talvez, a explicação para a proximidade familiar sentida, quer da língua quer dos seus parentes e amigos que nos receberam com uma amabilidade de excepção. Mas terá sido só por essa razão?
Foi então que me veio à memória a minha estadia em Damão. E recordei aquele domingo, 12 de Dezembro de 2004.
Eram seis horas da manhã. O vento soprava fresco e o sol ainda não nascera. Sentia-se a friagem da madrugada. No caminho a pé para a Igreja, foram muitas as pessoas que se me dirigiram em português, dando-me os bons dias. Não as conhecia e retribuí os cumprimentos com aquela timidez de quem está habituada a passar incógnita nos centros urbanos, onde a saudação é algo que não se destina a estranhos, quanto mais a estrangeiros como eu era, nesse momento.
O intenso movimento de pessoas que se dirigiam a pé, àquela hora da manhã, para a Igreja, provocou-me uma certa curiosidade.
Na véspera perguntara a Conrad, de 8 anos de idade, se ía à Missa no dia seguinte, Domingo, e a que horas. Disse-me que ía à das 6h 15h. Espantei-me pela hora matutina e perguntei-lhe se não havia missas mais tarde, pensando desde logo optar por uma delas.
Disse-me que sim, que havia uma às 10h e outra à tarde mas que a única missa em português era a das 6h15 da manhã. As outras eram em inglês.
“Mas, Conrad, assim tens de te levantar às 5h30m! Não ficas com sono? Ou vais dormir depois da Missa?”, indaguei.
Respondeu-me com aquele largo sorriso de criança, que não, que “ía à Missa das 6h15 porque gostava mais da Missa em português” e que “não ficava com sono nem ía dormir depois da Missa porque era “holliday” e queria brincar o dia todo por não ter escola”.
A Igreja, ampla, estava literalmente cheia de crianças, jovens, adultos e idosos de ambos os sexos. Nunca pensei que tal acontecesse àquela hora e isso impressionou-me. Não era dia de festa especial. Era um domingo comum, normal. Fiquei a saber que era assim todos os domingos, na missa das 6h 15m, em Damão.
Dos cânticos da assembleia à homilia, do Pai Nosso à Eucaristia, a língua materna ouvida assim em terra tão longínqua comoveu-me e confundiu-me. As orações foram rezadas em uníssono por quem estava habituado a fazê-lo com devoção, sem hesitações nem silêncios, percebendo-se por isso que frequentava normalmente a celebração dominical em português. Foi uma celebração eucarística gratificante nas suas dimensões humana, cultural, religiosa e espiritual.
Congratulei-me por ter optado pela madrugada. Estava em casa!
Não cabe aqui em espaço o muito que teria para dizer sobre o que me impressionou em Goa e, particularmente, em Damão.
Mas é espantoso o número de pessoas que falam português fluentemente e a satisfação genuína que sentem e manifestam quando nos identificam como portugueses.

Na Igreja ou no mercado, nas ruas, nas escolas ou nas praias, o português é ouvido a par do inglês, hindi e, no caso de Damão, do Gujarati, a língua local. Falado com correcção quando a ocasião assim o exige, nas conversas correntes do dia-a-dia surgem, no meio das frases em português, aleatoriamente, termos ingleses, como aconteceu com a referência de Conrad ao “holliday” ou de Jacintinho, de 4 anos, que em correcto português rejeitou a minha insistente oferta de uma bola “porque tinha muitos “toys” em casa e comprar mais um seria um “desperdício”(sic).
Integrados na Nação Indiana, aculturados mas sem perderem as raízes, a identidade e a memória que tentam preservar de uma forma comovente e persistente, Goeses e Damanenses ancoram-se na língua que, transmitida de pais para filhos e netos os une, acima de tudo, através daquele elo invisível que não se ensina nem sabe explicar. Mas que nos permite, na Índia, em Portugal ou em qualquer lugar, sentirmo-nos unidos como irmãos.
“Quando os Portugueses partiram, a Igreja ficou” (Miguel Sousa Tavares, em Sul, Viagens).
Sem juízos de valor, históricos, geográficos, políticos, religiosos ou morais, indubitável e marcante foi o sentimento quase palpável de tantos goeses ou damanenses que, sem rejeitarem a sua jovem nação, mantêm a alma portuguesa na língua que partilham com orgulho e na Fé que praticam com devoção.
Não bastam as marcas que a História petrificou em igrejas, casas coloniais, fortalezas e praças, estátuas e memoriais e, de forma mais indelével, na toponímia e na pintura, para manter viva a memória e a cultura que nos liga para além das fronteiras, da língua, da religião e dos afectos.
A força comovente e visível da memória portuguesa que me foi dada a observar em Goa e em Damão (não cheguei a ir a Diu), implica as entidades oficiais no esforço mútuo de cooperação e de desenvolvimento do intercâmbio cultural. Porque não é suficiente a persistência quase insana e solitária das comunidades locais em preservar as raízes da sua memória histórica e cultural.
Esta está-nos indubitavelmente associada, quer queiramos quer não. Impõe-se-nos, por isso, o dever histórico de não nos esquecermos e o comprometimento moral de perpetuarmos a memória da nossa presença através de dimensões enriquecedoras e edificantes, quer no domínio da cultura quer no da solidariedade, onde o espírito de servir e de missão adquirem o seu verdadeiro sentido.
Os goeses e damanenses, aqueles que, a par das línguas oficias e locais, comunicam entre si e connosco em língua portuguesa, podem ser uma minoria dentro da numerosa população da Nação Indiana.
Mas é uma minoria com muita identidade, uma identidade que não tem fronteiras e que nem a comunidade da língua chega para explicar.
É algo como que uma fé que vai para além da fé religiosa, uma espécie de fé em nós como um todo, uma fé ecuménica, universal, assente no facto de continuamos ligados pelas mesmas raízes que alimentam a nossa esperança e desígnios comuns e partilhados. Até quando? Não sei. Mas quem por lá passou sabe o quão doloroso é o sentir-se esquecido e deixar-se esquecer, face à indiferença de um povo que até já foi o mesmo.
Valeu a pena regressar a Damão, onde já tinha estado, e não optar por ficar em Bombaim, que já conhecera.
 Vale a pena não esquecermos que lá existe uma casa portuguesa, com certeza.
Nem que seja só aquela onde Bocage viveu.
E que queremos e devemos preservar em conjunto, como parentes que fomos e somos, o património histórico e cultural que nos une. Sempre.

Casa onde viveu Bocage, em Damão.

9 comentários:

Meg disse...

Madalena,

Acompanhei-te nesta viagem que adorei, e este "adorei" não é por acaso, e fiquei muito curiosa sobre a pessoa que és.
Porque és uma pessoa muito bonita.

Mais um beijo

Unknown disse...

Olá Madalena !
Parabéns ! Bonita prosa que descreve maravilhosamente os sentimentos de quem visita a chamada « antiga Índia portuguesa »!
Utilizando uma expressão feliz , de Maria Cavaco Silva , « é uma saudade de quinhentos anos » .
Um grande abraço
Maria Antónia

Madalena disse...

Obrigada, Meg e Maria Antónia, pelas palavras.
De facto, como digo algures, é difícil por em palavras o que nos vai no sentimento.
Por muito que falemos ou digamos, não conseguimos exprimir o que sentimos, porque é algo único e peculiar, só nosso. Mas há sentires comuns. E partilhas comuns que nos permitem apreciar com o mesmo agrado o mesmo espaço,o mesmo local.
As palavras dão-nos indícios, são pistas para a descoberta desses sentires tão únicos e simultaneamente tão universais. Para saber do que falamos temos de experienciar, de ir lá, de estarmos lá, sendo esse "lá" aqui ou em qualquer lugar, na nossa casa, na nossa terra, no mundo. Temos de nos dar na nossa completitude, sem dogmas e sem reservas. Como essa Fé que se sente e não se explica e que enriquece o sentido e a Vida.
Um beijinho.
Madalena

João Feyo Folque disse...

OLá Madalena
Gostei imenso de viajar através de si pelo Estado Português da India. Infelizmente ainda não fui lá mas estou a escrever sobre Damão e Diu. Tem graça porque o meu pai e um tio nasceram em Damão e o meu avô foi governador de Damão e de Diu de que gostou mais. Mesmo na Metrópole a minha avó por vezes ainda vestia sari e cabaias persas. Em minha casa come-se muitas vezes comida indiana e contavam-se muitas histórias sobre a India como é natural...
Parabéns e obrigado pela viagem! Bjs

Unknown disse...

Parabens Minha senhora Madelena.
Peco mil desculpas pelos meus erros de redacao, gramticos & solestracoes. Mais ainda nao tenho faciledade no meu computer para escrever em Portugues com todos pontuacoes & ascentos. Lendo o seu Blog sinti muito orgalhoso de tudo minha senhora esvreveu sobre minha terra Natal DAMAO.
Pois sim o nosso povo de Damao embora nao ricos, e nao muito educados , com DEGREE( sorry I am using English words)basicamente somos amigavies, agardavel,& sempre pronto ajudar mesmo pessoa estrangeiros quem vesitam a nossa Damao. Dentro de nossa pobresa & de pouco que temos oferecemos um bemvindo participacao nas nosa comidas. Um comum fraze que saudamos um a outro e:- JA COMEU, VENHAS PARA NOSA CASA PARTICIPAR COM NOS .
Eu sou natural de damao de 82 anos. estabelecida em Bombay mas tenho os meus raizes afundado na nossa terra Damao Fogo De Alma.
DE vagar vou escrever mais. Viva Damao. Muitas garcas minha senhora Madelena... Justino

Unknown disse...

Algo te digo...
duvida não me resta,
que escritora deverias ter sido,
percebe-se pela serenidade na prosa,
quanto pelo efeito surtido,
não deixas palavras sem sentimento,
nestes textos já sabidos,
preenche-nos mais vezes com prazer,
de palavras e vida, bem vividos.

João (mano)

tentando seguir o exemplo de uma linda irmã que sempre me referenciou com belas e sabias palavras. Beijo.

telef disse...

Foi excelente esta crónica sobe Damão. São ideias bem tecidas e bordadas- uma portuguesa, descobrindo o seu legado. Aqui o património português se vê nos seus monumentos igrejas e fortes, mas mais do que tudo o património português vive no coração e alma dos damanenses, dado que todos eles falam português em casa e as missas e orações são em idioma português. Quem preservará mais o património português os monumentos e as muralhas ou os corações dos damanenses por séculos e séculos?

telef disse...

Foi excelente esta crónica sobe Damão. São ideias bem tecidas e bordadas- uma portuguesa, descobrindo o seu legado. Aqui o património português se vê nos seus monumentos igrejas e fortes, mas mais do que tudo o património português vive no coração e alma dos damanenses, dado que todos eles falam português em casa e as missas e orações são em idioma português. Quem preservará mais o património português os monumentos e as muralhas ou os corações dos damanenses por séculos e séculos?

telef disse...

Foi excelente esta crónica sobe Damão. São ideias bem tecidas e bordadas- uma portuguesa, descobrindo o seu legado. Aqui o património português se vê nos seus monumentos igrejas e fortes, mas mais do que tudo o património português vive no coração e alma dos damanenses, dado que todos eles falam português em casa e as missas e orações são em idioma português. Quem preservará mais o património português os monumentos e as muralhas ou os corações dos damanenses por séculos e séculos?