6.1.14

DEAMBULANDO

Lisboa, Bairro Alto 

Saio do Studio Astolfi , na Rua das Salgadeiras, sem bússola nem Norte, olhando as ruas.
Viro à esquerda, para a Rua da Atalaia. Num Bar que serve ginginha,  partem piropos em jeito de assobio lançados às jovens que passam. É o Bairro Alto aos seus amores tão dedicado.
Na Rua da Rosa, que quis um dia dar nas vistas, as varandas estão cheias de flores de papel ressequido, memórias de outras festas e das noites adormecidas nas portas fechadas dos bares cansados. Copos de plástico rolam com o vento pelo chão, num passo de dança que imprime ritmo ao andar. 
Viro para a Travessa dos Inglesinhos e o Convento do mesmo nome surge brilhante na sua alvura. 
Para a esquerda, a Rua dos Caetanos. O Conservatório dos meus sonhos de menina-bailarina espreita imponente e degradado. Indiciando o peso da idade de quem o esquece, ostenta uma flâmula comemorativa dos seus  170 anos, celebrados em 2005.  Estamos em 2010.


Este alheamento, este deixa andar que arrepia na sua indiferença inestética e abandono sem sentido, reflecte-se nas fachadas dos edifícios em frente. Puro contágio? 

Na Galeria Graça Brandão, as telas viraram pichagens, aconchegadas entre uma garagem e a Editora Livros do Brasil. Tudo, no imóvel decrépito, aponta para a sua já não existência. É sábado. O aviso FECHADO encontra sentido. Mas outro aviso confunde: “Depois das 18h00 queira fazer o favor de carregar no botão do 1º andar. Obrigado”.  
Se carregar, o que acontece? O esplendor de outrora surgirá como por magia?
Olho a montra. Expostos 21 livros, todos de capa azul, queimada e a maioria enroladas pelo sol. De O Livro da Selva, de Rudyard Kipling, passando por Viajantes Solitários, de Fernando Pratas ou pelo O Homem e o Mar, de Ernest Hemingway, até Um deus desconhecido, de John Steinbeck, entre muitos outros, é um mundo editorial de respeito que se encontra escarrapachado ao sol, coberto de moscas mortas numa vitrina que sorri indolente e adormecida para o Conservatório de Lisboa.
Cartazes azuis publicitam “Editorial Livros do Brasil - tradição e modernidade”; “Colecção 2 mundos”; “ Editora Livros do Brasil. Mais de 50 anos ao serviço da leitura”; “Colecção Livros do Brasil”. Tudo é azul, mas não etéreo. É um azul anil, de esquecimento, aquele que meus olhos vêem e lamentam. São os meus referenciais de juventude abandonados sem o estarem, de facto. 



Confirmo na Internet que a Editora existe e está a avançar para novos projectos. 










Porquê então publicitar em estado de caos um futuro que ainda não é e um passado que já foi e não é o presente que se revela?
Confusa e entristecida, mudo de rumo e regresso pela Rua do Norte, passando pelo 1º de Maio, espaço de inesquecíveis e vivas  tertúlias de amigos que continuo a preservar num Bairro que só pode ser alto e que "hoje, saudoso e velhinho, recordando com carinho seus amores, suas paixões, pr'a cumprir a sina sua, ainda veio pr'o meio da rua cantar as suas canções."

Trovas antigas, saudade louca... 





Refugio-me da panóplia de pontos de vista e sentidos contrastes, no Largo de Camões, ao Chiado,  enchendo a alma com esta Lisboa surpreendente, belíssima, única e singular, que tanto amo.

Silêncio velha Lisboa, vai cantar o Bairro Alto.


24.10.13

CONQUISTA

Livre não sou, 
que nem a própria vida 
Mo consente. 
Mas a minha aguerrida 
Teimosia 
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
(.../.)
Miguel Torga, Conquista

























23.10.13

IDENTIDADE

Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.
 Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.


Manuel Torga, Identidade